Durante vários anos, o debate na União Europeia (UE) em matéria de
equilíbrio das finanças públicas dividiu profundamente a direita e a esquerda.
Não sobre a necessidade de os seus Estados em geral e os membros do euro em
particular manterem contas equilibradas: ao contrário do que certa direita quer
fazer crer, os socialistas nunca foram contra a consolidação das contas
públicas. O que nos divide e aí, sim, profundamente, é o modo de o fazer.
Para alguma dessa direita, a simples correcção dos défices orçamentais é só
por si suficiente para criar as condições para o regresso do crescimento
económico. Se dúvidas houvesse, a realidade dos últimos anos desmente bem essa
crença: a média dos défices dos países da zona euro desceu de 6,1 % do PIB em
2010 para 2,6% em 2014, mas o crescimento económico permanece anémico. Pior: a
Europa está em risco de entrar num longo período de estagnação e é aliás a
única zona do mundo que permanece em crise mais de 6 anos depois do colapso do banco
Lehman Brothers.
Um ajustamento centrado apenas na redução acelerada do défice que não seja
acompanhado de um robustecimento das bases em que assenta a competitividade da economia,
não gerará mais do que uma convergência meramente nominal, conjuntural e sem
sustentabilidade.
É por isso que o debate tem de abandonar a dicotomia primária do consolidar
ou não as contas, para incidir sobre o ritmo, dimensão e componentes do
ajustamento na trajectória de consolidação. De pouco serve uma consolidação que
deixa os estados com o tecido económico e social completamente destruído.
Esta é a nossa crítica fundamental à abordagem que tem sido seguida nos
últimos anos na Europa.
Hoje é amplamente reconhecido que o ajustamento imposto pela anterior Comissão
Europeia de Durão Barroso e Olli Rehn, apoiada pela maioria conservadora do
Conselho Europeu, foi excessivamente rápido e brutal, com a agravante de ter
sido reforçado por estranhas concepções moralistas que dividiram os países em
virtuosos (os credores) e pecadores (os devedores), sofrendo os últimos, como
parte do processo de ajustamento, uma supostamente merecida punição.
Na revisão do PEC que teve lugar entre 2011 e 2013, a esquerda no PE
conseguiu introduzir nos textos legislativos (conhecidos por Six Pack e Two
Pack) margens de flexibilidade - leia-se de racionalidade económica - para
garantir, entre outros aspectos, que os ritmos de ajustamento impostos aos
países em défice orçamental excessivo pudessem ser ajustados à sua situação
económica específica.
A anterior equipa da Comissão Europeia optou por não reconhecer nem utilizar
estas margens de flexibilidade. Paradoxalmente, e perante o incumprimento das
metas de ajustamento por parte de diversos países, essa mesma Comissão não teve
alternativa senão ir alterando essas metas e /ou os correspondentes prazos,
embora o tenha feito de forma muito pouco transparente e sob a capa de grandes
concessões políticas, recusando assumir aquilo que de facto era: a aplicação
pura e simples da legislação na sua totalidade.
A nova Comissão de Jean-Claude Juncker decidiu finalmente fazer agora o que
a sua antecessora sempre recusou: usar as margens de flexibilidade contidas no
PEC.
Para esta mudança contribuiu a visão democrata-cristã e, consequentemente, mais
social, do novo presidente, o facto de Olli Rehn ter sido substituído por um
comissário socialista, Pierre Moscovici, e a pressão da Itália, país que,
apesar de ser a terceira economia da zona euro, se debate com muitos dos problemas
típicos dos parceiros da periferia.
As regras do PEC foram agora interpretadas numa comunicação da Comissão: o ritmo
do ajustamento deixa de ser uma trajectória cega passando a ser adaptado ao
ciclo económico de cada país, o que é do mais elementar bom senso. Em situações
económicas extremas, aliás, não será exigido qualquer ajustamento. Se esta
flexibilidade tivesse sido aplicada em tempo útil, a recessão económica na
Europa, e em Portugal, teria certamente sido bem menos severa.
O impacto orçamental das reformas estruturais potenciadoras de crescimento
económico também não será contabilizado para efeitos do PEC - o que significa
que mesmo que tais reformas provoquem uma alteração da trajectória fixada em
termos de ajustamento orçamental, não implicarão uma obrigação de correcção
imediata do desvio.
O investimento estratégico também beneficiará do mesmo tipo de tratamento e
neste conceito inclui-se o investimento nacional em projectos financiados pelos
fundos estruturais de apoio às regiões mais desfavorecidas da UE.
Infelizmente, este tipo de flexibilidade só se aplicará, por agora, aos
países que não estão em situação de "défice excessivo" (superior a 3%
do PIB), o que deixa por enquanto Portugal de fora. Alargar a flexibilidade a
estes países será um dos nossos próximos combates.
A interpretação da flexibilidade operada pela Comissão Europeia ainda não é
a reforma profunda que defendemos para transformar o PEC num instrumento inteligente
de governação da zona euro. Mas é um primeiro pé que colocamos na porta para
podermos, finalmente, começar a corrigir os erros do passado. Estas alterações
"interpretativas", conjugadas com a iniciativa para o investimento
Europeu (Fundo Juncker) e articuladas com as recentes decisões de Mario Draghi
à frente do Banco Central Europeu, parecem estar finalmente a trazer um pouco
do absolutamente necessário oxigénio à Europa... Já era tempo, mesmo se ainda
está muito por fazer.
(Artigo publicado no Público de 25 de Janeiro de 2015)
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